Venho de longe, trago o pensamento
Venho de longe, trago o pensamento
Banhado em velhos sais e maresias;
Arrasto velas rotas pelo vento
E mastros carregados de agonia.
Provenho desses mares esquecidos
Nos roteiros de há muito abandonados
E trago na retina diluídos
Os misteriosos portos não tocados.
Retenho dentro da alma, preso à quilha
Todo um mar de sargaços e de vozes,
E ainda procuro no horizonte a ilha
Onde sonham morrer os albatrozes...
Venho de longe a contornar a esmo,
O cabo das tormentas de mim mesmo.
sexta-feira, 17 de agosto de 2007
quarta-feira, 15 de agosto de 2007
Vinicius de Moraes
Samba de Orly
1970
Vai meu irmão
Pega esse avião
Você tem razão
De correr assim
Desse frio
Mas beija
O meu Rio de Janeiro
Antes que um aventureiro
Lance mão
Pede perdão
Pela duração Dessa temporada
Mas não diga nada
Que me viu chorando
E pros da pesada
Diz que eu vou levando
Vê com é que anda
Aquela vida à toa
E se puder me manda
Uma notícia boa
1970
Vai meu irmão
Pega esse avião
Você tem razão
De correr assim
Desse frio
Mas beija
O meu Rio de Janeiro
Antes que um aventureiro
Lance mão
Pede perdão
Pela duração Dessa temporada
Mas não diga nada
Que me viu chorando
E pros da pesada
Diz que eu vou levando
Vê com é que anda
Aquela vida à toa
E se puder me manda
Uma notícia boa
Antero de Quental
Intimidade
Quando, sorrindo, vais passando, e toda
Essa gente te mira cobicosa,
Es bela - e se te nao comparo a rosa,
E que a rosa, bem ves, passou de moda...
Anda-me as vezes a cabeca a roda,
Atras de ti tambem, flor caprichosa!
Nem pode haver, na multidao ruidosa,
Coisa mais linda, mais absurda e doida.
Mas e na intimidade e no segredo,
Quando tu coras e sorris a medo,
Que me apraz ver-te e que te adoro, flor!
E nao te quero nunca tanto (ouve isto)
Como quando por ti, por mim, por Cristo, Juras
- mentindo - que me tens amor...
Quando, sorrindo, vais passando, e toda
Essa gente te mira cobicosa,
Es bela - e se te nao comparo a rosa,
E que a rosa, bem ves, passou de moda...
Anda-me as vezes a cabeca a roda,
Atras de ti tambem, flor caprichosa!
Nem pode haver, na multidao ruidosa,
Coisa mais linda, mais absurda e doida.
Mas e na intimidade e no segredo,
Quando tu coras e sorris a medo,
Que me apraz ver-te e que te adoro, flor!
E nao te quero nunca tanto (ouve isto)
Como quando por ti, por mim, por Cristo, Juras
- mentindo - que me tens amor...
Paulo Leminsk
Amor Bastante
quando eu vi você
tive uma idéia brilhante
foi como se eu olhasse
de dentro de um diamante
e meu olho ganhasse
mil faces num só instante
basta um instante
e você tem amor bastante
um bom poema
leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto
quando eu vi você
tive uma idéia brilhante
foi como se eu olhasse
de dentro de um diamante
e meu olho ganhasse
mil faces num só instante
basta um instante
e você tem amor bastante
um bom poema
leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto
terça-feira, 14 de agosto de 2007
Du Bocage
Quer ver uma perdiz chocar um rato
Quer ver uma perdiz chocar um rato,
Quer ensinar a um burro anatomia,
Exterminar de Goa a senhoria,
Ouvir miar um cão, ladrar um gato;
Quer ir pescar um tubarão no mato,
Namorar nos serralhos da Turquia,
Escaldar uma perna em água fria,
Ver um cobra castiçar co'um pato;
Quer ir num dia de Surrate a Roma,
Lograr saúde sem comer dois anos,
Salvar-se por milagre de Mafoma;
Quer despir a bazófia aos Castelhanos,
Das penas infernais fazer a soma,
Quem procura amizade em vis gafanos.
Quer ver uma perdiz chocar um rato,
Quer ensinar a um burro anatomia,
Exterminar de Goa a senhoria,
Ouvir miar um cão, ladrar um gato;
Quer ir pescar um tubarão no mato,
Namorar nos serralhos da Turquia,
Escaldar uma perna em água fria,
Ver um cobra castiçar co'um pato;
Quer ir num dia de Surrate a Roma,
Lograr saúde sem comer dois anos,
Salvar-se por milagre de Mafoma;
Quer despir a bazófia aos Castelhanos,
Das penas infernais fazer a soma,
Quem procura amizade em vis gafanos.
Vinícius de Moraes
Rosário
E eu que era um menino puro
Não fui perder minha infância
No mangue daquela carne!
Dizia que era morena
Sabendo que era mulata
Dizia que era donzela
Nem isso não era ela
Era uma môça que dava.
Deixava... mesmo no mar
Onde se fazia em água
Onde de um peixe que era
Em mil se multiplicava
Onde suas mãos de alga
Sobre o meu corpo boiavam
Trazendo à tona águas-vivas
Onde antes não tinha nada.
Quanto meus olhos não viram
No céu da areia da praia
Duas estrelas escuras
Brilhando entre aquelas duas
Nebulosas desmanchadas
E não beberam meus beijos
Aqueles olhos noturnos
Luzinho de luz parada
Na imensa noite da ilha!
Era minha namorada
Primeiro nome de amada
Primeiro chamar de filha
Grande filha de uma vaca!
Como não me seduzia
Como não me alucinava
Como deixava, fingindo
Fingindo que não deixava!
Aquela noite entre todas
Que cica os cajus! travavam!
Como era quieto o sossego
Cheirando a jasmim-do-Cabo!
Lembro que nem se mexia
O luar esverdeado.
Lembro que longe, nos longes
Um gramofone tocava,
Lembro dos seus anos vinte
Junto aos meus quinze deitados
Sob a luz verde da lua.
Ergueu a saia de um gesto
Por sobre a perna dobrada
Mordendo a carne da mão
Me olhando sem dizer nada
Enquanto jazente eu via
Como uma anêmona n'água
A coisa que se movia
Ao vento que a farfalhava.
Toquei-lhe a dura pevide
Entre o pêlo que a guardava
Beijando-lhe a coxa fria
Com gosto de cana-brava.
Senti, à pressão do dedo
Desfazer-se desmanchada
Como um dedal de segredo
A pequenina castanha
Gulosa de ser tocada.
Era uma dança morena
Era uma dança mulata
Era o cheiro de amarugem
Era a lua cor de prata
Mas foi só aquela noite!
Passava dando risada
Carregando os peitos loucos
Quem sabe pra quem, quem sabe!
Mas como me perseguia
A negra visão escrava
Daquele feixe de águas
Que sabia ela guardava
No fundo das coxas frias!
Mas como me desbragava
Na areia mole e macia!
A areia me recebia
E eu baixinho me entregava
Com medo que Deus ouvisse
Os gemidos que não dava!
Os gemidos que não dava
Por amor do que ela dava
Aos outros de mais idade
Que a carregaram da ilha
Para as ruas da cidade.
Meu grande sonho da infância
Angústia da mocidade.
E eu que era um menino puro
Não fui perder minha infância
No mangue daquela carne!
Dizia que era morena
Sabendo que era mulata
Dizia que era donzela
Nem isso não era ela
Era uma môça que dava.
Deixava... mesmo no mar
Onde se fazia em água
Onde de um peixe que era
Em mil se multiplicava
Onde suas mãos de alga
Sobre o meu corpo boiavam
Trazendo à tona águas-vivas
Onde antes não tinha nada.
Quanto meus olhos não viram
No céu da areia da praia
Duas estrelas escuras
Brilhando entre aquelas duas
Nebulosas desmanchadas
E não beberam meus beijos
Aqueles olhos noturnos
Luzinho de luz parada
Na imensa noite da ilha!
Era minha namorada
Primeiro nome de amada
Primeiro chamar de filha
Grande filha de uma vaca!
Como não me seduzia
Como não me alucinava
Como deixava, fingindo
Fingindo que não deixava!
Aquela noite entre todas
Que cica os cajus! travavam!
Como era quieto o sossego
Cheirando a jasmim-do-Cabo!
Lembro que nem se mexia
O luar esverdeado.
Lembro que longe, nos longes
Um gramofone tocava,
Lembro dos seus anos vinte
Junto aos meus quinze deitados
Sob a luz verde da lua.
Ergueu a saia de um gesto
Por sobre a perna dobrada
Mordendo a carne da mão
Me olhando sem dizer nada
Enquanto jazente eu via
Como uma anêmona n'água
A coisa que se movia
Ao vento que a farfalhava.
Toquei-lhe a dura pevide
Entre o pêlo que a guardava
Beijando-lhe a coxa fria
Com gosto de cana-brava.
Senti, à pressão do dedo
Desfazer-se desmanchada
Como um dedal de segredo
A pequenina castanha
Gulosa de ser tocada.
Era uma dança morena
Era uma dança mulata
Era o cheiro de amarugem
Era a lua cor de prata
Mas foi só aquela noite!
Passava dando risada
Carregando os peitos loucos
Quem sabe pra quem, quem sabe!
Mas como me perseguia
A negra visão escrava
Daquele feixe de águas
Que sabia ela guardava
No fundo das coxas frias!
Mas como me desbragava
Na areia mole e macia!
A areia me recebia
E eu baixinho me entregava
Com medo que Deus ouvisse
Os gemidos que não dava!
Os gemidos que não dava
Por amor do que ela dava
Aos outros de mais idade
Que a carregaram da ilha
Para as ruas da cidade.
Meu grande sonho da infância
Angústia da mocidade.
Carlos Drummond de Andrade
Quadrilha
João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para o Estados Unidos, Teresa para o
convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto
Fernandes
que não tinha entrado na história.
João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para o Estados Unidos, Teresa para o
convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto
Fernandes
que não tinha entrado na história.
Fernando Pessoa
Navegar é Preciso
Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
"Navegar é preciso; viver não é preciso".
Quero para mim o espírito [d]esta frase, transformada a forma para a casar como eu sou:
Viver não é necessário; o que é necessário é criar. Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo.
Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha. Cada vez mais assim penso.
Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da humanidade.
É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.
Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
"Navegar é preciso; viver não é preciso".
Quero para mim o espírito [d]esta frase, transformada a forma para a casar como eu sou:
Viver não é necessário; o que é necessário é criar. Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo.
Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha. Cada vez mais assim penso.
Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da humanidade.
É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.
Mário Quintana
Os poemas
Os poemas são pássaros que chegamnão se sabe de onde e pousamno livro que lês.Quando fechas o livro, eles alçam vôocomo de um alçapão.Eles não têm pousonem portoalimentam-se um instante em cada par de mãose partem.E olhas, então, essas tuas mãos vazias,no maravilhoso espanto de saberesque o alimento deles já estava em ti...
Os poemas são pássaros que chegamnão se sabe de onde e pousamno livro que lês.Quando fechas o livro, eles alçam vôocomo de um alçapão.Eles não têm pousonem portoalimentam-se um instante em cada par de mãose partem.E olhas, então, essas tuas mãos vazias,no maravilhoso espanto de saberesque o alimento deles já estava em ti...
Guilherme de Almeida
Essa que eu hei de amar…Essa que eu hei de amar perdidamente um diaserá tão loura, e clara, e vagarosa, e bela,que eu pensarei que é o sol que vem, pela janela,trazer luz e calor a essa alma escura e fria.E quando ela passar, tudo o que eu não sentiada vida há de acordar no coração, que vela…E ela irá como o sol, e eu irei atrás delacomo sombra feliz… — Tudo isso eu me dizia,quando alguém me chamou. Olhei: um vulto louro,e claro, e vagaroso, e belo, na luz de ourodo poente, me dizia adeus, como um sol triste…E falou-me de longe: "Eu passei a teu lado,mas ias tão perdido em teu sonho dourado,meu pobre sonhador, que nem sequer me viste!"
segunda-feira, 13 de agosto de 2007
Álvares de Azevedo
Álvares de Azevedo
Amor
Quand la mort est si belle, Il est doux de mourir. V. Hugo
Amemos! Quero de amor Viver no teu coração! Sofrer e amar essa dor Que desmaia de paixão! Na tu'alma, em teus encantos E na tua palidez E nos teus ardentes prantos Suspirar de languidez! Quero em teus lábio beber Os teus amores do céu, Quero em teu seio morrer No enlevo do seio teu! Quero viver d'esperança, Quero tremer e sentir! Na tua cheirosa trança Quero sonhar e dormir! Vem, anjo, minha donzela, Minha'alma, meu coração! Que noite, que noite bela! Como é doce a viração! E entre os suspiros do vento Da noite ao mole frescor, Quero viver um momento, Morrer contigo de amor!
Amor
Quand la mort est si belle, Il est doux de mourir. V. Hugo
Amemos! Quero de amor Viver no teu coração! Sofrer e amar essa dor Que desmaia de paixão! Na tu'alma, em teus encantos E na tua palidez E nos teus ardentes prantos Suspirar de languidez! Quero em teus lábio beber Os teus amores do céu, Quero em teu seio morrer No enlevo do seio teu! Quero viver d'esperança, Quero tremer e sentir! Na tua cheirosa trança Quero sonhar e dormir! Vem, anjo, minha donzela, Minha'alma, meu coração! Que noite, que noite bela! Como é doce a viração! E entre os suspiros do vento Da noite ao mole frescor, Quero viver um momento, Morrer contigo de amor!
Sonetos de petrarca
Seis sonetos de Petrarca
III
Se a minha vida do áspero tormento
E tanto afã puder se defender,
Que por força da idade eu chegue a ver
Da luz do vosso olhar o embaciamento,
E o áureo cabelo se tornar de argento,
E os verdes véus e adornos desprender,
E o rosto, que eu adoro, empalecer,
Que em lamentar me faz medroso e lento,
E tanta audácia há de me dar o Amor,
Que vos direi dos martírios que guardo,
Dos anos, dias, horas o amargor.
Se o tempo é contra este querer em que ardo,
Que não o seja tal que à minha dor
Negue o socorro de um suspiro tardo.
VIII
Ó Pai, depois dos dias ociosos,
Depois das noites a velar em vão,
Com este anseio no meu coração,
Mirando os atos por meu mal viçosos,
Praza-te, ó lume, que a outros mais formosos
Caminhos e a mais bela ocupação
Eu me volte, fugindo à dura ação
Do inimigo e aos seus meios cavilosos.
Dez anos mais um hoje faz, Senhor,
Que me vi submetido à tirania
Que sobre o mais sujeito é mais feroz.
Piedade tem do meu não digno ardor,
Conduz meu pensamento a melhor via,
Lembra-o de que estiveste numa cruz.
XXXII
Quanto mais perto estou do dia extremo
Que o sofrimento humano torna breve,
Mais vejo o tempo andar veloz e leve
E o que dele esperar falaz e menos.
E a mim me digo: Pouco ainda andaremos
De amor falando, até que como neve
De dissolva este encargo que a alma teve,
Duro e pesado, e a paz então veremos:
Pois que nele cairá essa esperança
Que nos fez delirar tão longamente
E o riso, e o pranto, e o medo, e também a ira;
E veremos o quão freqüentemente
Por coisas dúbias o ânimo se cansa
E que não raro é em vão que se suspira.
CLXXXIX
Vai o meu barco, cheio só de olvido,
À meia noite, ao árduo mar, no inverno,
Entre Cila e Caríbdis; e ao governo
Vê-se o senhor, melhor: meu inimigo.
A cada remo um pensar atrevido
Parece rir à vaga e ao próprio averno:
Rompe as velas um vento úmido, eterno
De esperanças, desejos e gemidos.
Chuva de pranto, névoa de rancor
Afrouxa e banha os cabos extenuados,
De ignorância trançados e de error.
Foge-me o doce lume costumeiro,
Razão e engenho da onda são tragados;
E eis que do porto já me desespero.
CXC
Uma cândida cerva me surgiu
sobre o verde gramado – os cornos de ouro –,
entre dois riachos, à sombra de um louro,
na estação fria, mal o sol se abriu.
Tão doce em mim tal vista se imprimiu,
que por segui-la toda lida ignoro,
como o avarento em busca de um tesouro,
tanto assim meu tormento se evadiu.
“Ninguém ouse tocar-me” – escrito havia
no colo, entre topázios e diamantes,
“que eu fosse livre César ordenou”.
Já o claro sol chegava ao meio-dia,
quando eu, de olhos absortos, ignorantes,
escorreguei para a água, e ela escapou.
CCXXIV
Ó minha alcova, que já foste um porto
Às tempestades que cruzei diurnas,
Fonte agora de lágrimas noturnas,
Que no dia, por pejo, ocultas porto;
Ó leito, onde encontrei paz e conforto
De tanta mágoa, que dolentes urnas
Sobre ti verte o Amor com mãos ebúrneas,
Só para mim crueza e desconforto!
Porém do meu retiro e do repouso
Não fujo, mas de mim e do pensar,
Que tanta vez segui num devaneio;
E em meio ao vulgo adverso e inamistoso
(Quem diria?) refúgio vou buscar,
Tal é de ficar só o meu receio.
(Traduções de Renato Suttana)
III
Se a minha vida do áspero tormento
E tanto afã puder se defender,
Que por força da idade eu chegue a ver
Da luz do vosso olhar o embaciamento,
E o áureo cabelo se tornar de argento,
E os verdes véus e adornos desprender,
E o rosto, que eu adoro, empalecer,
Que em lamentar me faz medroso e lento,
E tanta audácia há de me dar o Amor,
Que vos direi dos martírios que guardo,
Dos anos, dias, horas o amargor.
Se o tempo é contra este querer em que ardo,
Que não o seja tal que à minha dor
Negue o socorro de um suspiro tardo.
VIII
Ó Pai, depois dos dias ociosos,
Depois das noites a velar em vão,
Com este anseio no meu coração,
Mirando os atos por meu mal viçosos,
Praza-te, ó lume, que a outros mais formosos
Caminhos e a mais bela ocupação
Eu me volte, fugindo à dura ação
Do inimigo e aos seus meios cavilosos.
Dez anos mais um hoje faz, Senhor,
Que me vi submetido à tirania
Que sobre o mais sujeito é mais feroz.
Piedade tem do meu não digno ardor,
Conduz meu pensamento a melhor via,
Lembra-o de que estiveste numa cruz.
XXXII
Quanto mais perto estou do dia extremo
Que o sofrimento humano torna breve,
Mais vejo o tempo andar veloz e leve
E o que dele esperar falaz e menos.
E a mim me digo: Pouco ainda andaremos
De amor falando, até que como neve
De dissolva este encargo que a alma teve,
Duro e pesado, e a paz então veremos:
Pois que nele cairá essa esperança
Que nos fez delirar tão longamente
E o riso, e o pranto, e o medo, e também a ira;
E veremos o quão freqüentemente
Por coisas dúbias o ânimo se cansa
E que não raro é em vão que se suspira.
CLXXXIX
Vai o meu barco, cheio só de olvido,
À meia noite, ao árduo mar, no inverno,
Entre Cila e Caríbdis; e ao governo
Vê-se o senhor, melhor: meu inimigo.
A cada remo um pensar atrevido
Parece rir à vaga e ao próprio averno:
Rompe as velas um vento úmido, eterno
De esperanças, desejos e gemidos.
Chuva de pranto, névoa de rancor
Afrouxa e banha os cabos extenuados,
De ignorância trançados e de error.
Foge-me o doce lume costumeiro,
Razão e engenho da onda são tragados;
E eis que do porto já me desespero.
CXC
Uma cândida cerva me surgiu
sobre o verde gramado – os cornos de ouro –,
entre dois riachos, à sombra de um louro,
na estação fria, mal o sol se abriu.
Tão doce em mim tal vista se imprimiu,
que por segui-la toda lida ignoro,
como o avarento em busca de um tesouro,
tanto assim meu tormento se evadiu.
“Ninguém ouse tocar-me” – escrito havia
no colo, entre topázios e diamantes,
“que eu fosse livre César ordenou”.
Já o claro sol chegava ao meio-dia,
quando eu, de olhos absortos, ignorantes,
escorreguei para a água, e ela escapou.
CCXXIV
Ó minha alcova, que já foste um porto
Às tempestades que cruzei diurnas,
Fonte agora de lágrimas noturnas,
Que no dia, por pejo, ocultas porto;
Ó leito, onde encontrei paz e conforto
De tanta mágoa, que dolentes urnas
Sobre ti verte o Amor com mãos ebúrneas,
Só para mim crueza e desconforto!
Porém do meu retiro e do repouso
Não fujo, mas de mim e do pensar,
Que tanta vez segui num devaneio;
E em meio ao vulgo adverso e inamistoso
(Quem diria?) refúgio vou buscar,
Tal é de ficar só o meu receio.
(Traduções de Renato Suttana)
As duas flores
Castro Alves
A DUAS FLORES
São duas flores unidas,
São duas rosas nascidas
Talvez no mesmo arrebol,
Vivendo no mesmo galho,
Da mesma gota de orvalho,
Do mesmo raio de sol.
Unidas, bem como as penas
Das duas asas pequenas
De um passarinho do céu...
Como um casal de rolinhas,
Como a tribo de andorinhas
Da tarde no frouxo véu.
Unidas, bem como os prantos,
Que em parelha descem tantos
Das profundezas do olhar...
Como o suspiro e o desgosto,
Como as covinhas do rosto,
Como as estrelas do mar.
Unidas... Ai quem pudera
Numa eterna primavera
Viver, qual vive esta flor.
Juntar as rosas da vida
Na rama verde e florida,
Na verde rama do amor!
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * *
A DUAS FLORES
São duas flores unidas,
São duas rosas nascidas
Talvez no mesmo arrebol,
Vivendo no mesmo galho,
Da mesma gota de orvalho,
Do mesmo raio de sol.
Unidas, bem como as penas
Das duas asas pequenas
De um passarinho do céu...
Como um casal de rolinhas,
Como a tribo de andorinhas
Da tarde no frouxo véu.
Unidas, bem como os prantos,
Que em parelha descem tantos
Das profundezas do olhar...
Como o suspiro e o desgosto,
Como as covinhas do rosto,
Como as estrelas do mar.
Unidas... Ai quem pudera
Numa eterna primavera
Viver, qual vive esta flor.
Juntar as rosas da vida
Na rama verde e florida,
Na verde rama do amor!
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * *
Tereza
Manuel Bandeira
TeresaA primeira vez que vi TeresaAchei que ela tinha pernas estúpidasAchei também que a cara parecia uma perna
Quando vi Teresa de novoAchei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)
Da terceira vez não vi mais nadaOs céus se misturaram com a terraE o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas
TeresaA primeira vez que vi TeresaAchei que ela tinha pernas estúpidasAchei também que a cara parecia uma perna
Quando vi Teresa de novoAchei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)
Da terceira vez não vi mais nadaOs céus se misturaram com a terraE o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas
Balada das dez bailarinas do cassino
Cecília Meireles
Balada das dez bailarinas do cassino
Dez bailarinas deslizampor um chão de espelho.Têm corpos egípcios com placas douradas,pálpebras azuis e dedos vermelhos.Levantam véus brancos, de ingênuos aromas,e dobram amarelos joelhos.Andam as dez bailarinassem voz, em redor das mesas.Há mãos sobre facas, dentes sobre florese com os charutos toldam as luzes acesas.Entre a música e a dança escorreuma sedosa escada de vileza.As dez bailarinas avançamcomo gafanhotos perdidos.Avançam, recuam, na sala compacta,empurrando olhares e arranhando o ruído.Tão nuas se sentem que já vão cobertasde imaginários, chorosos vestidos.A dez bailarinas escondemnos cílios verdes as pupilas.Em seus quadris fosforescentes,passa uma faixa de morte tranqüila.Como quem leva para a terra um filho morto,levam seu próprio corpo, que baila e cintila.Os homens gordos olham com um tédio enormeas dez bailarinas tão frias.Pobres serpentes sem luxúria,que são crianças, durante o dia.Dez anjos anêmicos, de axilas profundas,embalsamados de melancolia.Vão perpassando como dez múmias,as bailarinas fatigadas.Ramo de nardos inclinando floresazuis, brancas, verdes, douradas.Dez mães chorariam, se vissemas bailarinas de mãos dadas.
(in Mar Absoluto e outros poemas: Retrato Natural. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983.)
Balada das dez bailarinas do cassino
Dez bailarinas deslizampor um chão de espelho.Têm corpos egípcios com placas douradas,pálpebras azuis e dedos vermelhos.Levantam véus brancos, de ingênuos aromas,e dobram amarelos joelhos.Andam as dez bailarinassem voz, em redor das mesas.Há mãos sobre facas, dentes sobre florese com os charutos toldam as luzes acesas.Entre a música e a dança escorreuma sedosa escada de vileza.As dez bailarinas avançamcomo gafanhotos perdidos.Avançam, recuam, na sala compacta,empurrando olhares e arranhando o ruído.Tão nuas se sentem que já vão cobertasde imaginários, chorosos vestidos.A dez bailarinas escondemnos cílios verdes as pupilas.Em seus quadris fosforescentes,passa uma faixa de morte tranqüila.Como quem leva para a terra um filho morto,levam seu próprio corpo, que baila e cintila.Os homens gordos olham com um tédio enormeas dez bailarinas tão frias.Pobres serpentes sem luxúria,que são crianças, durante o dia.Dez anjos anêmicos, de axilas profundas,embalsamados de melancolia.Vão perpassando como dez múmias,as bailarinas fatigadas.Ramo de nardos inclinando floresazuis, brancas, verdes, douradas.Dez mães chorariam, se vissemas bailarinas de mãos dadas.
(in Mar Absoluto e outros poemas: Retrato Natural. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983.)
O mestre do haiakai
O mestre do haikai
Guilherme de Almeida
CIGARRADiamante. Vidraça.Arisca, áspera asa riscao ar. E brilha. E passa.CHUVA DE PRIMAVERAVê como se atraemnos fios os pingos frios!E juntam-se. E caem.OUTUBROCessou o aguaceiro.Há bolhas novas nas folhasdo velho salgueiro.O HAIKAILava, escorre, agita A areia. E, enfim, na bateia Fica uma pepita.NOTURNONa cidade, a lua:a jóia branca que bóiana lama da rua.HORA DE TER SAUDADEHouve aquele tempo...(E agora, que a chuva chora,ouve aquele tempo!)OS ANDAIMESNa gaiola cheia(pedreiros e carpinteiros)o dia gorjeia.
QUIRIRICalor. Nos tapetestranqüilos da noite, os grilosfincam alfinetes.
poesia.netCarlos Machado, 2003
• Guilherme de Almeida "Os Meus Haicais" In Poesia Vária 1947
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Guilherme de Almeida
CIGARRADiamante. Vidraça.Arisca, áspera asa riscao ar. E brilha. E passa.CHUVA DE PRIMAVERAVê como se atraemnos fios os pingos frios!E juntam-se. E caem.OUTUBROCessou o aguaceiro.Há bolhas novas nas folhasdo velho salgueiro.O HAIKAILava, escorre, agita A areia. E, enfim, na bateia Fica uma pepita.NOTURNONa cidade, a lua:a jóia branca que bóiana lama da rua.HORA DE TER SAUDADEHouve aquele tempo...(E agora, que a chuva chora,ouve aquele tempo!)OS ANDAIMESNa gaiola cheia(pedreiros e carpinteiros)o dia gorjeia.
QUIRIRICalor. Nos tapetestranqüilos da noite, os grilosfincam alfinetes.
poesia.netCarlos Machado, 2003
• Guilherme de Almeida "Os Meus Haicais" In Poesia Vária 1947
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